A medida do homem
Dizem por aí que futebol é uma metáfora para a vida. Pode ser. Eu acredito que o futebol diz o básico que se precisa saber sobre o caráter alguém. É a medida do homem, fazendo um uso um pouco menos deprimente da expressão-título do livro do Dr. Bayard.
É só pegar meu pai. Ele adorava futebol, o que o credencia para o experimento. Era fã do Pereirão, juiz dos anos 90 que mantinha pulso forte no jogo. Compreensível: meu pai não gostava muito de reclamação, choradeira. O lema dele nas brigas com os filhos adolescentes era "se tu ficar brabo, só vais ter dois trabalhos: ficar e depois desficar".
Um dia, no almoço, eu contei que no colégio queria ser o camisa 11, do Romário. Porque o Romário era mestre, jogava muito. Mas o Chico, que era o craque do time da sala, também queria ser o Romário, então eu achava que o professor não ia me dar a 11. Meu pai começou um sermão: odiava que a gente achasse que já tinha perdido antes de começar o jogo. Também reclamou da disputa pela camiseta do Romário. Em parte porque um número na camiseta não valia nada, era pura frescura. Em parte porque ele desprezava um pouco o Romário - e isso já em 1989, antes da marra do baixinho subir à enésima potência.
Antes que se pense mal de quem não está aqui para se defender, ele desprezava o Romário como pessoa, não como jogador. Sabia que o cara era craque, decidia, gostava do futebol objetivo dele. Mas desprezava a postura carioca, o gênio difícil. Na escala de valores do meu pai, a Genialidade estava um pouco abaixo do Respeito aos Outros, então eu nunca consegui convencê-lo que não importava nem um pouco se o Romário queria sentar na janelinha sempre. Capetas, animais, baixinhos: sempre que eles faziam suas traquinagens eu ria e meu pai reclamava. A ética do trabalho, em falta no Romário que não treina, era o lema do meu pai. Assim como ele reclamava do Romário, todo domingo tentava evitar que a gente dormisse até depois das 2 da tarde, abrindo a porta do quarto por qualquer motivo, nos acordando para atender algum amigo nosso no telefone com um sorrisinho sádico.
Neste dia dos Pais, o segundo desde que ele morreu, eu fui na casa da mãe e sentei na poltrona dele. Vi uma vitória do Grêmio e uma do Inter. Nenhum passe, certo ou errado, de nenhum jogador, craque ou pereba, me deixou esquecê-lo, nem por um segundo. Atirei meus pés no banquinho, como ele fazia. Não assisti à saída de bola porque dá sorte, conforme meu avô afirmou a ele uma vez.
E, no segundo tempo de Grêmio x Atlético, me flagrei torcendo para o Leo Lima, habilidoso-jogador-carioca- incapaz-de-dominar-uma-bola- sem-fazer-uma-balaca, entregar alguma pro adversário, tomar um susto e aprender a jogar sério. Onde já se viu? Aí eu percebi: quem tem filhos não morre.
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